23/11/2013

Silêncio e solidão


Não importava onde estivesse, sempre havia alguém a achando triste. Nem todos se manifestavam, mas sempre havia alguém  olhando e se perguntando o que lhe teria acometido. Bem mais de uma vez, lhe ofereceram um lenço, acreditando que estava para chorar.

Seu semblante era mesmo tristinho, dava sempre a impressão de que estava deprimida, mas não mentia. Melaine era uma garota muito introspectiva. Desde criança preferia ficar em seu canto, quieta, só olhando os outros brincarem, quando muito. Geralmente preferia ficar sozinha mesmo. Uma plantinha costumava ser entretenimento melhor do que qualquer uma de suas bonecas. Não se dava com as outras meninas, elas falavam demais, gritavam demais, e ela queria aproveitar o momento.

Na escola não foi muito diferente. Continuou preferindo ficar só. Detestava quando precisava fazer trabalho em grupo, porque os outros falavam demais, davam palpites demais, discutiam demais. Gostava de expor seu ponto de vista, quando necessário, mas não de prolongar indefinidamente as argumentações. Não fazia questão de estar certa.

No colegial, pouca coisa mudou. Aliás, só uma coisa mudou, estava dez centímetros mais alta. O mesmo corte chanel, o mesmo olhar tristonho, a mesma indisposição social e a mesma implicância dos colegas, que chegavam freqüentemente a ser perversos.

As aulas de educação física eram uma tragédia. Usar aqueles shortinhos dos anos oitenta na frente de todo mundo, era um constrangimento só. E quando começou a onda de aeróbica? Meu Deus, que pé no sacovisk! Aquela empolgação forçada, aquela mania que querer ser sexy de qualquer jeito, aquela música em volume insuportável e aquele maiô que teimava em entrar no rego. Era uma garota tímida, nem ao clube ia, para não chamar atenção.

O pior era essa alegria plastificada toda não condizer com uma época extremamente pessimista, com guerras civis e regionais proliferando por toda parte. Quando voltava da escola, se fechava no quarto, fazia suas tarefas e ficava quieta. Silente, solitária, apenas aproveitando o momento de sossego. Os pais chegaram a pensar que estivesse usando drogas.

Não chegou a ter festa de debute. Se fosse convidar todos os amigos, não daria meia dúzia. Não falo de colegas, conhecidos e gente que simplesmente via todos os dias no colégio. Amigos mesmo, deveria ter dois ou três, se muito, nenhum com intimidade. Os parentes todos moravam muito longe, o mais próximo estava em Goiânia, preso por receptação de carga roubada.

O vestibular não foi lá grandes coisas também. Tentou três vezes, sem se desesperar, sem mesmo ter apreço por qualquer um dos cursos existentes. Como era boa em matemática, estudou engenharia da informática. Curso novo na época, sem grandes perspectivas para um mercado ainda restrito. Namoro? Não, nenhum. Melaine acabou ganhando tardiamente um apelido, derivado de seu nome: Melão Colia. Pelos corredores da faculdade, só a chamavam de Melão. Nada a ver com seu corpo de curvas discretas, seios pequenos e glúteos pouco desenvolvidos.

Na faculdade se via obrigada a conversar mais. Menos mal ser acadêmica de exactas, mas infelizmente as matérias de webdesigner rendiam as odiadas discussões acaloradas, porque nelas a subjectividade galopava louca a toda velocidade.Sua preferência sempre foi por fractais e padrões geométricos, especialmente utilizando as proporções áureas. Não era arrojada e despachada, como se esperava de uma moça tão jovem. Seus trabalhos sempre tinham a simetria de uma pintura clássica, ainda que quem olhasse de relance não a percebesse.

Triste era quando se encontrava com estudantes de humanas. Por Cristo, como eles falam! Parecem gostar de fazer brotar argumentações em terreno estéril! Melaine logo fez alguns desafetos, apenas cortando o assunto com "Pode ficar com sua razão e me deixe em paz". Sua figura tristonha fez o apelido se alastrar pela universidade inteira. Seus desafetos tiveram, sem querer, a maior vingança que poderiam imaginar, a tornaram famosa.

Alguém aventou a possibilidade de ela ainda ser virgem e sua vida acadêmica se tornou um purgatório. Passou a receber convites extremistas, de um lado crentes insistindo para que se convertesse e se tornasse "noiva de Jesus", do outro gente oferecendo ou se oferecendo como "cura para a doença". Acreditavam que era triste por ser virgem.

Foi isso até a formatura. Melaine só teve alguma relação com os professores, não com todos e não com profundidade. Entretanto, era confiável, algo raro em gente tão jovem. Conseguia, assim, trabalhos para websites de empresas e instituições. Ela não delirava, ouvia com atenção o que o cliente pedia, do que ele precisava e o que pretendia, então construia a página inteira, às vezes do zero. Só nos últimos meses de curso é que começaram a ver utilidade na introspecção dela, quando passou levar dinheiro para casa.

Por ironia, e para preservar sua privacidade, passou a usar Melão Colia como alcunha profissional. Não queria ficar rica, famosa, prestigiada, nem, cousa alguma. Só queria que respeitassem seu silêncio e sua solidão voluntária. Isso lhe custou a fama de fria e indiferente, para com os dramas alheios. Na verdade ela é que não entendia por que teria que compartilhar sua intimidade com todo mundo, como costumavam fazer.

Agora podia trabalhar em casa, só saindo quando fosse estritamente necessário. Infelizmente, para ela, a era das redes sociais estava consolidada. Precisou, para o bem de sua carreira, abrir um perfil. Para a tristeza dos pais, o perfil era meramente profissional, não dava uma linha de quem era Melão Colia Webdesigner.

Na vida civil, continuava a ser uma fonte de preocupações para os pais. Nenhum namoro, nenhuma amizade conhecida. Se restringia à cadeira de balanço na varanda do quintal, onde podia passar horas no mais absoluto silêncio.

Um dia Melaine conheceu um homem, quando parentes do Acre despencaram até São Paulo. Uma viagem tão longa justificava uma permanência prolongada. Ele não era bonito nem feio, não era o rei da popularidade e não tinha um repertório de piadas engraçadas, mas foi a primeira pessoa no mundo a respeitar as coisas que ela mais prezava, depois dos pais, seus momentos de silêncio e solidão. Ele não fazia absolutamente nada, além de mostrar que estava por perto, se precisasse. Pela primeira vez ela era vista sorrindo.

Casaram-se na semana passada, para o alívio dos pais temerosos por seu futuro, quando tivessem que deixá-la. Fora de casa, especialmente em público, continuava a mesma Melão Colia que todos conheciam. Em casa, com seu Alberto, era a Melaine. Descobriu que nos braços dele, também conseguia o silêncio e a solidão de que precisava.

17/11/2013

A cura era simples


A última vez em que ela esteve em casa, foi há seis anos, quando iniciaram o tratamento. Foi um choque para a família inteira. Brasileiro ainda tem a mentalidade de que as coisas só acontecem com os outros, nunca consigo, por isso reluta em se prevenir.

No início não era grave, não limitava sua vida e não causava dores fortes. O diagnóstico se deu no início e as esperanças de cura eram muito grandes. Foram providenciar os exames no mesmo dia, Aproveitando as férias escolares. Uma semana depois, com exames e uma dieta rigorosa, o tratamento adequado era definido. Até então não houve problemas.

Os problemas começaram quando precisaram iniciar o tratamento em si, muito caro para as posses da família do taxista. Confiaram nas propagandas oficiais e buscaram os hospitais públicos, quando perceberam que o termo "público" não dava garantia alguma de tratamento humano. Foram empurrados com a barriga por meses, com burocracia, informações incompletas, exigências que sequer constavam na legislação, mas sem as quais poderiam levar anos para conseguir o tratamento para a menina.

Memorandos e ofícios prolixos e altamente retóricos, que falavam muito para dizer coisa alguma, enchiam as mesas e facilitavam perder documentos e exames. Gastaram os tubos para providenciar novos, porque a própria ouvidoria exigia o carimbo de uma autoridade responsável para validar a denúncia, ou seja, exigiam que o culpado se declarasse culpado para dar andamento a qualquer coisa. Isso poderia levar anos que não tinham de prazo.

A saúde da menina se deteriorava, enquanto papéis voavam de um lado para o outro, serelepes e insensíveis, ao passo que outros furavam a fila, por questões que nada tinham a ver com a saúde pública.

Em um ano as dores começaram a ficar muito fortes, e a medicação começara a rarear. Quando vinha, não raro estava vencida. Gastaram mais tubos de dinheiro comprando o que seus impostos já pagavam. Quando descobriram que estavam comprando os medicamentos, tiveram o fornecimento cortado.

Enquanto a filha chorava de dor na cama, eles recebiam respostas burocráticas, impessoais e vazias, enquanto uma série de cartazes na parede alardeava as conquistas da saúde pública. Decidiram entrar com uma ação judicial. Entraram e ganharam fácil, mas a todos os lugares a que iam, quando havia médico especialista, não havia equipamentos funcionando.

O homem, desesperado, chegou a pensar em vender o táxi para pagar um tratamento particular, como os que os ministros ganham, em hospitais de ponta, mas o dinheiro não cobriria todo o tratamento e ainda ficaria sem sua ferramenta de trabalho. Com a espera forçada, o agravamento da doença encareceu o tratamento, com isso também dificultou a obtenção de um lugar especializado. Voltaram a entrar com uma ação, exigindo o tratamento adequado onde quer que fosse.

Passaram-se um, dois, três, quatro anos, até que o Supremo Tribunal de Justiça ameaçasse prender o advogado do governo, se tentasse novamente atrasar o processo. Ele sempre dizia que eram só conflitos de interesses, que não tinha nada contra aquelas pessoas, embora soubesse das conseqüências do que estava praticando.

Foi mais um ano de dor e sofrimento, até mais uma ameaça do Supremo fazer o processo da menina andar. Infelizmente as esperanças de cura já eram remotas. O alento é que a então adolescente, já podia se mexer sem que isso lhe custasse urros de dor, ela já podia se alimentar sem chorar.

Novamente os médicos lamentavam, inclusive o que fez o diagnóstico com tanta antecedência, que viu seu trabalho ser jogado às traças. A doença já tinha tomado todo o corpo da garota. Era uma questão de tempo até o pior acontecer. A aparelhagem que a mantinha viva não era muito melhor do que a da rede pública, onde ela a tinha, mas funcionava e tinha gente capacitada para operá-la.

Os anos se passaram com aquele apartamento sendo a residência da garota e de sua mãe, que só voltava para casa para tomar banho e trocar de roupas. Os médicos ficavam boquiabertos com a resistência dela, mas também extremamente revoltados, porque com essa resistência toda, ela certamente estaria curada, se tivesse recebido os cuidados em tempo hábil.

Chegou o dia de levarem a filha de volta para casa. Novamente a desumanidade de autarquias públicas atrapalharam, mas desta vez bem menos, já que o risco de prisão era real. Estavam todos lá, todos. família, amigos, colegas de escola, professores, até o pipoqueiro que sentia falta de sua cliente cativa. Todos, menos ela.

O cortejo fúnebre saiu em silêncio. Nem o baile funk funcionou naquele dia. Nem o carro de som fez anúncios naquele dia. Ninguém entendia direito o que tinha acontecido, ou o que deixara de acontecer, já que estavam todos tão optimistas com a perspectiva do tratamento. Entender o quê?

O sepultamento também foi silente. Silêncio só quebrado por choros e soluços. Só o farfalhar causado pelo vento dava alguma harmonia à sinfonia do luto. Os pais ficaram até a laje de concreto queimado ser posta sobre a sepultura, depois mais algum tempo, um tentando consolar o outro.

Na volta, o caminho parecia maior do que o da ida. A casa, pequena e paga com muito sacrifício, parecia um palacete de tão espaçosa. Só a caixa de correios tinha algum conteúdo. Era um ofício, avisando que a garota tinha perdido direito à medicação, por ter ficado três meses seguidos sem ir buscá-lo.

12/11/2013

Day of Grace


No começo era só uma bolinha de carne, linda e rechonchuda como uma boneca de porcelana; só que com todos os efeitos colaterais de um bebê. Fraldas sujas, noites de sono interrompidas, enfim, tudo a que tem direito quem se atreve a ter filhos. Era uma criança rica, mas era uma criança. Nos distantes anos finais da década de 1920, não havia os recursos que atenuam o sofrimentos dos pais de hoje.

Com o crescimento, apesar de toda a família ser prodigiosa na sua estética, a beleza da menina começava a se diferenciar. Claro que no começo, a testa destacada dava um ar de brinquedo à infante, mas o conjunto todo era tão bem harmonizado, que só os mais maldosos se apegavam ao detalhe; Deus, como tem gente maldosa neste mundo de expiações!

Sua infelicidade foi ter nascido fisicamente frágil, em uma família que prezava o porte atlético. Nunca teve um corpo forte, mas em matéria de personalidade, colocava todos os parentes no chinelo. Às vezes era difícil conviver com ela, especialmente quando se convencia de que estava certa, o que era muito freqüente. Era do tipo "Ame-a ou só admire de uma distância segura". Mas seu coração era descomunal, algo que simplesmente não se atribuía à aristocracia da época. Isso rendeu brigas.

Conforme crescia sua beleza transbordava, tão abundante quanto incômoda. Sabe aquela técnica de chamar a amiga menos arrumadinha para sair, e assim parecer mais atraente, por comparação? Com ela não funcionava. Até descabelada a moça era linda de morrer! E ela, filha da aristocracia, dominava bem as técnicas de realçar a beleza e a presença. Só saía com ela quem não se importava em parecer feia.

Era uma verdadeira princesa, para o bem e pra o mal. E como uma princesa, muito panaca que se achava príncipe queria desposá-la, para trancá-la em casa e sustentá-la em seus caprichos e devaneios feminilescos, para sua exclusiva e perpétua admiração. Para muitas moças da época, isso ainda era um sonho de consumo. Para a maioria isso já soava anacrônico. Para ela era um pedido de eutanásia.

Ela brigou. Como brigou! Brigou com o pai, com a mãe, os irmãos, os de fora que metiam o bedelho, mas principalmente com os patetas que acreditaram ser homens o bastante para dominá-la e conquistar seu coração. Para ela, isto era a personificação da futilidade instituída! Era inteligente e sensata o suficiente para escolher ela mesma o seu marido, não queria casamento arranjado. Ela tinha os pés no chão, bem firmes, sabia que seu pai era humano e poderia estar errado. Para ela, estar errado era simplesmente não concordar consigo.

Na toada que se seguia, saiu de cassa assim que fez dezoito anos. As amigas riam, as companheiras aplaudiam. Estas desejavam toda sorte do mundo, aquelas diziam que quebraria a cara por estar acostumada com luxo e conveniências. A decisão estava tomada, ela iria tomar as rédeas de sua vida, mesmo que para isso tivesse que sair de casa. Lá foi ela para Nova Iorque, usar de sua beleza estonteante para ganhar a vida como modelo.

Sim, houve época em que ser modelo demandava beleza, ser exótico e ter cara de doente terminal não garantia uma vaga. E ela era do tipo que ofuscava todos ao redor, não só por seu rosto que parecia ter sido copiado de um anjo, mas pela postura e pela classe que trazia de berço. Afinal, algo de bom a família lhe deu, mas estava sendo usado da forma como não queriam que usasse.

Ela namorou. Foi dona de seu nariz e de seu destino. Rapidamente conquistou o cinema. Ainda que tivesse feito filmes ruins, o público iria às salas de cinema só para se encantar com ela. Os que fez se tornaram clássicos, e todos eles têm a faculdade de realçar e valorizar sua beleza épica. caprichosa e detalhista, estudava com afinco o trabalho que iria fazer.

E ela continuou namorando, mas namorando quem quisesse mesmo. Sua preferência era por homens mais velhos. Não a ponto que precisar ser enfermeira, mas a maturidade lhe atraía. Na discrição de uma dama, alguns dos maiores astros do cinema tiveram repouso em seus braços. Os galãs másculos e viris do cinema se amoleciam completamente diante de seu sorriso dos toques de seus braços delicados. A família tinha que dar o braço a torcer, ela estava certa.

Mas nem tudo eram flores em seu caminho. Na realidade, os lutos eram freqüentes, muitas vezes por causas violentas. Passou ela a ser o norte da família. Aliás, da família e de boa parte do mundo. Seu prestígio era tamanho, que a moda dos anos cinqüenta foi praticamente feita para ela. Aqueles cortes e proporções exuberantes eram praticamente a sua versão têxtil. Não é à toa que tanta gente ame a moda cinqüentista.

Certa feita, viajando a trabalho, a estrela de primeira grandeza aportou em um pequeno principado. O príncipe regente, conta-se que premeditadamente, quis conhecer o elenco do filme. Sua fama de conquistador era notória, tão notória quanto a urgência em providenciar um herdeiro. Mas esbarrou no gênio que se escondia debaixo daquela cabeleira loura. Ele parece ter gostado do chega-pra-lá diplomático, talvez fosse a primeira vez que isso lhe acontecia.

Com insistência e admitir quem é que manda, ele conseguiu o coração da diva. Incontáveis pretendentes o tornaram o homem mais odiado de sua época. Seria só ela concluir o que já tinha começado e se casariam. Como bônus, no último filme, ela provou que também teria se dado bem como cantora; na época não havia softwares para fazer taqüaras rachadas parecerem boas vozes.

A família dele olhava com desconfiança, aquela que consideravam uma aventureira querendo mandar no principado. E deram-lhe problemas por algum tempo. Com todos os contras, e com a família finalmente admitindo "Você estava certa, Grace, em tudo", ela evoluiu de uma estrela magna para Sua Sereníssima Alteza Princesa Grace de Mônaco. E as amigas dizendo que ninguém iria querer uma esposa mandona!

Pois a mandona mandou mesmo! Mulher inteligente, detalhista, começou a colocar laxativo na água da limpeza pública. Fez, com isso, inimigos poderosos. Gente histérica alardeava o apocalipse para o principado e tudo mais, mas aconteceu justamente o contrário. O casamento por amor se mostrou também o melhor negócio da vida do príncipe. O turismo simplesmente explodiu, desde que  tinha se casado com ela. Já não precisava mesmo das más companhias.

O pomo da discórdia eram os três rebentos. A família dele queria que fossem mimados e estragados, como era de praxe acreditar que se fizesse com nobres. Ela não, ela lutou para conseguir seu espaço e queria que com os filhos também fosse assim. Foi isso que minou sua saúde. Oh, Grace! Teu sacrifício foi enorme, mas não foi em vão. Estão todos vivos, bem e dignos.

No auge da crise, quando estava conseguindo contorná-la, decidiu dispensar o Mercedes-Benz e ir ela mesma com a caçula, para dar nós nos pontos feitos. Um glamouroso Rolls Royce Corniche, talvez? Não. A princesa austera, que não se envergonhava de repetir roupas e comprara a luta da amiga Audrey Hepburn, tinha um pacato Rover 2000, carro de classe média.

Indo para casa, já conseguindo se reconciliar com a filha rebelde, que hoje também trabalha para se manter, o fio de prata começava a esgotar, Mestra Nada a esperava na curva. Já era hora de o mundo cada vez mais mesquinho e desprezível deixar de sugar sua beleza, ainda estonteante, mesmo com a idade madura e os problemas de saúde. O carro foi para baixo, Grace de Mônaco foi para o céu. E hoje ela faz oitenta e três anos, porque a morte é reservada apenas aos perversos.

02/11/2013

Gerente Lobo


Havia uma rede de hotéis muito requisitada. Não era exactamente a oitava maravilha do mundo, mas era o melhor que um certo país tinha disponível, por isso mesmo vivia com seus estabelecimentos lotados. Fora fundada por um cidadão a quem chamavam de Gerente Lobo, por sempre ter tido cargos de comando, ainda mais depois das novas regras para hotéis, às quais sua rede, que levava seu cognome, se adequou rapidamente.

As outras redes, algumas até melhores e mais tradicionais, não conseguiam acompanhar, pois havia uma crise e a capacidade de investimentos era reduzida. Não só isso, quase todos os grandes profissionais estavam no Gerente Lobo. Por seu faturamento astronômico, podia se dar o luxo de ter sempre frutas frescas, carne abatida ou pescada no dia, roupas de cama feitas sob medida e com estampas e texturas exclusivas, as melhores atrações artísticas enfim... Ninguém competia com ele. Se dava o alto luxo de desconsiderar a concorrência.

Com tamanha fartura de qualidade, ninguém se importava muito com os métodos, nem sempre dignos de que Lobo se valia. Ninguém mesmo. Todos os profissionais do ramo sonhavam em integrar seu quadro de funcionários, raramente alguém não pensava duas vezes, antes de largar o posto de administração da concorrência, para ser faxineiro no Gerente Lobo. Claro que entrando lá,. via que as coisas não eram tão cor de rosa quanto as propagandas alardeavam.

Ah, as propagandas! Lobo as fazia dentro de seus próprios estabelecimentos! Mandava publicar suas próprias revistas, seus próprios jornais, que sequer citavam a existência dos concorrentes, a não ser que fosse para apontar uma tragédia, sempre contrapondo a excelência dos serviços de sua rede de hotéis. Quando a tragédia era na sua rede, abafava, mandava colocar besteiróis de todo tipo, planejava entrevistas consigo mesmo, com seus funcionários, gincanas, sorteios de brindes, festivais e todo tipo de distração. O povo ficava tão encantado, que quando se dava o trabalho de ler as notícias contra, não acreditava.

Mas se Roma caiu, por que o Lobo não cairia? A ganância começou a ficar menor do que os brios de seus funcionários de colaboradores, novos concorrentes, menores e mais ágeis, começaram a oferecer serviços e atrações de qualidade similar, às vezes até melhores. Com isso as demissões voluntárias começavam a acontecer.

Claro que um império não cai de uma hora para a outra, como uma jaca podre, ele afunda como um navio; devagar, matando aos poucos, cruel e lentamente, mas a olhos vistos. Ainda assim, muita gente acreditava que era só mais uma manobra ousada do capitão, se recusando a crer que aquele navio estava fazendo água.

A concorrência começo a também comprar alimentos fresquinhos, às vezes até carne recém abatida e frutos do mar recém pescados. Claro que com essa demanda, o preço subiu, e mesmo assim começou a faltar. A concorrência tratava seus fornecedores com  muito menos arrogância, muito menos mesmo! Isso desmentia a crendice popular de que dinheiro é tudo nos negócios. Mas não é mesmo! Só os idiotas fadados à falência pensam assim, mas uma rede corrompida precisa que eles acreditem nisso.

Com o tempo, a manutenção dos hotéis começou a baquear. Os lindíssimos papéis de parede, que eram trocados ainda novos, e reaproveitados pela concorrência e até pelos funcionários, passaram a ficar mais tempo na parede, recebendo retoques, consertos, às vezes até remendos, estes que eram cada vez menos disfarçáveis.

A qualidade do cardápio, crucial para o ramo, também caiu. No começo, apenas diminuíam um pouco as porções e caprichavam no tempero, para disfarçar. Com o tempo, tiveram que colocar corantes, ervas finas, usar até essências para fazer o patinho parecer filé mignon. No começo, pouco se percebia, mas a clientela antiga, de sentidos mais refinados, passou a freqüentar outros hotéis.

E como dinheiro não é tudo, em vez de se emendar, Lobo passou a exigir mais e mais de seu pessoal, para fazer o cliente acreditar que a Rede Gerente Lobo continuava sim a ser a líder absoluta do ramo, que a concorrência só existia por piedade do público, ou pela admissão de hóspedes desqualificados. Sem perceber, acabou ofendendo e perdendo de vez alguns clientes antigos e caros, que estavam experimentando os novos serviços da concorrência.

A soberba crescente de Lobo contaminou até seus periódicos internos, que se nunca foram imparciais, então tinham se tornado tacanhos, extremamente tendenciosos e completamente cegos para qualquer mosquinha que voasse dentro de um hotel da rede.

Foi providenciada uma renovação no cardápio e nos serviços. Melhorias? Que nada! Estavam definitivamente trocando os pratos e as gentilezas de outrora, por apelações sensoriais de nomes pomposos. Moças serviçais de maiô sempre circularam pelas dependências, mas eram maiôs comportados, com gola, gravatinha, até bolsos, do tipo que uma mulher poderia usar na rua, no verão. Passaram a rebolar deliberadamente diante dos hóspedes, com insinuações e até encostadas dignas dos cabarés mais ordinários.

Enquanto isso, o cardápio, que fizera a fama da rede, estava em franca decadência. Os chefes responsáveis por eles, estavam quase todos aposentados, os que beberam de seu talento e sua experiência já estavam em dupla situação, já velhos ou migrando para a concorrência, ou ambos. Para disfarçar, o trato com os funcionários endureceu, obrigando-os a mentir descaradamente para a clientela, negando até mesmo uma barata que passeasse serelepe em cima do risoto.

 O Gerente Lobo não era mais a rede de outrora. o Lobo, que antes tomava a frente de tudo, estava velho e muito combalido, deixando a direção da rede em mãos de gente ainda menos compromissada com a qualidade do que ele. O resultado foi o previsível, os hóspedes atentos se sentiam como Alice no país das Maravilhas, com mundo fingindo que estavam na bélle époque, quando o quadro arregaladamente visível era o pior da grande depressão.

Não, a rede de hotéis Gerente Lobo não fechou. Como eu disse, um império não desaparece de uma hora para a outra. Roma ainda existe, não existe? E vive de seu passado. De glórias passadas também vive o império do finado Gerente Lobo. Só que ao contrário de Roma, a rede não tem mais um milímetro do carisma e do charme irresistível de outrora.

Sim, há impérios que se reinventam, corrigem suas mazelas e renascem das cinzas como a Phoenix, mas não é o caso. A Rede Gerente Lobo praticamente não existe mais, virtualmente só o nome é o mesmo. Hoje é uma sociedade anônima, cujos acionistas especulativos só querem sugar o que ela ainda puder oferecer, e não hesitarão um segundo antes de jogá-la no abismo, em vez da pira renovadora a que não têm acesso.

Não têm mais funcionários nem colaboradores, só prestadores de serviços. Os pratos são terceirizados, os papéis de parede foram trocados por tinta barata, os uniformes garbosos de outrora foram trocados por coletes e bonés ordinários, os maiôs que enchiam os olhos são hoje shortinhos baixos no limite e tops que caem a todo momento, o público refinado migrou definitivamente para redes estrangeiras, e muita gente se convenceu de que é melhor ficar em casa ou se hospedar com parentes.

Saudades de quando o Gerente Lobo oferecia um sanduíche de coração, hoje é fast food caro e de valor nutricional zero. Chamem o rádio táxi, vou comer na padaria mesmo.