22/05/2014

O sonho não espera



  Caríssima, é com pesar que comunico minha decisão. Não pense que foi simples, nem que isso implica em decréscimo de apreço por sua pessoa, absolutamente! Foram anos de meditação e reflexão a respeito, após nada menos do que três longos adiamentos e conseqüentes dilatações da espera por algo que deveria ter ocorrido ainda em 1993. Infelizmente, fica claro, não ocorreu, posto que não estamos juntos para o que foi proposto.

  A culpa não foi sua, não totalmente, pelo menos. Você tem sido uma agente passiva das circunstâncias que fugiram muito ao seu controle, mas a inocência das partes não dá suporte à espera indefinida. Infelizmente, ao contrário do que dizem os poetas, eu tenho prazo de validade. Expirei.

  Chega um momento em que nós não valemos mais à pena, por mais que sejamos desejados. A partir de certa altura do campeonato, não fazemos mais os efeitos que deveríamos, pelo contrário, acabamos azedando, impondo o fel da ansiedade e da eterna insaciedade à vida de quem deveríamos adoçar e amansar. Mais ou menos como um medicamento mal conservado ou fora da validade, ele pode matar em vez de curar.

  Eu estou ciente da crueldade que isso pode significar ao seu subconsciente. Reitero, portanto, que aguardei o máximo que pude, consumindo de minhas próprias energias para tanto, mas chegou o momento em que simplesmente não pude mais esperar. É como uma lei da física, é inviolável e nenhum figurão do judiciário livra tua cara do que te aguarda.

  Confesso que estou desapontado também. Sei que isso não vai atenuar o seu desapontamento, mas é para que saiba que eu gostaria muito que esse encontro tivesse ocorrido, ainda no primeiro prazo. Eu também estou ciente do preço que você vai pagar, ninguém melhor do que eu sabe disso. Eu fui feito para você, especificamente para você e mais ninguém, então só eu te conheço com essa profundidade. Aliás, agradeço pelo alimento que me mandou com sacrifício por tantos anos, isso atenua minha frustração e me dá a certeza de que sua falta foi involuntária.

  Eu sei que a depressão e o saudosismo vão te assaltar com muita assiduidade. Sei bem que as lembranças das oportunidades perdidas vão te atormentar até o fim de seus dias na terra, talvez até depois. Eu sei muito bem o quanto isso vai lhe custar e o quanto será pesado manter a necessária aparência de adulto equilibrado, tendo só um peso no bastão de sua vida. Diga-se de passagem, um peso muito denso que é a realidade cotidiana, e que eu deveria contrabalançar com as realizações que teria te ajudado a concretizar.

  Sei do que você é capaz. Sei de verdade e desejei muito ver seus feitos calando as línguas ferinas dos parentes e dos invejosos. Infelizmente não deu! Chegou o momento de eu me recolher e você não estava comigo. Sem esse encontro talvez você tenha dificuldade em encontrar os meus sucessores, talvez eles sequer consigam saber quem é você, já que não pode identificá-la pela convivência não ocorrida. Sem o reconhecimento mútuo, eu lamento, novas frustrações absolutamente desnecessárias vão acontecer.

  Só o que posso fazer é pedir que preencha o vazio que deixei com o que lhe for possível, isso tornará a sobrevida menos penosa. Ainda que seja o saudosismo a tomar o meu lugar, faça isso, pois a situação agora não é de escolher o melhor, mas o menos nocivo. Dessa sorte, talvez até mesmo a depressão seja melhor do que o vazio que deixo no nosso ponto de encontro. Talvez seja, lamento informar, questão de sobrevivência.

  Os sucessivos adiamentos e não encontro de nossos olhares no horizonte mataram minha companheira. Hope acabou se sacrificando para que essa espera fosse possível. A dor do luto só aumentou com a ineficácia do sacrifício, isso consumiu muito de meus recursos e inviabilizou um deslocamento, que talvez tivesse possibilitado o encontro. Por isso eu peço desculpas e que compreenda, foi absolutamente impossível permanecer.

  Peço finalmente que seja forte, não haverá mais o que fazer além de ser muito forte.

  Carinhosamente, seu Sonho.

14/05/2014

Uma declaração


  Declaro que não sou um idiota. Ainda que minha fronte ostente vagas semelhanças com as mais vulgares expressões de déficit de atenção, de modo algum meus limites intelectuais me enquadram na idiotice, tampouco dão a outrem o direito, prerrogativa ou mesmo autoridade de me taxar como se eu o fosse; especialmente pelos motivos torpes que têm servido de âncora aos manifestantes.

  Declaro que não sou um egoísta. Se porventura nego auxílio a alguém é por ter ciência de que a dose converteria o remédio em veneno. Amparar pelo simples motivo da facilidade, da comoção ou (pior) da piedade, me ensinou a vida ser um desserviço ao virtual beneficiário. Cedo e concedo de minhas exíguas posses sem medo de arrependimentos, já o fiz, faço e farei sempre que for necessário. Não concedo, no entanto, os meios para a perpetuação da dependência de quem pode mover as próprias pernas e caminhar, seja em que âmbito, circunstâncias ou por qualquer pretexto.

  Declaro que não sou segregador. Minhas opções culturais e estéticas jamais me tolheram a visão dos humanos que se escondem debaixo de suas aparências. Nunca tratei com desdém, desrespeito, pilhérias, cinismo ou arrogância o meu semelhante. A muitos é notória a sisudez e às vezes belicosidade de meu temperamento, mas ele não o é por qualquer motivo externo, muito menos por distinção de pessoas, o é por sua rude e temperamental natureza. O facto pois de eu preferir elementos do meio de século passado, mas não todos eles, é por identidade e nenhum outro motivo.

  Declaro que não sou alienado. Não me convenço com dados de um governo que fala de si mesmo, seja qual for esse governo. Não me atenho a poucas fontes, não acredito só porque já confio e não desacredito só porque não confio.0Nnão defendo ideologias e meu raciocínio é livre de suas amarras, desvelando minha visão de mundo para além do que discursos afins pretendem me conduzir. Minhas conclusões são baseadas em parâmetros, jamais em opiniões, pontos de vista ou noticias tendenciosas, estas que têm sido as predominantes na história da imprensa. Opiniões, aliás, por vezes são tratadas com desprezo pela minha análise, inclusive as minhas, posto que raramente têm ancoragem científica.

  Declaro que não sou canalha. Pauto minha passagem neste orbe pela consciência de que sou um sócio igualitário, em ações ordinárias, não me cabendo o direito a qualquer prerrogativa que não tenha conseguido por meus méritos e esforços, bem como a deliberação de não me valer das que porventura detenha se não for absolutamente necessário. Não acredito no que quero, no que me conforta, ou ainda seria ateu, acredito no que me convence e não sou convencido por discursos, estes antes me repelem. No que creio e o que pratico são embasados nos resultados perenes, que se estendem muito além das finalizações sumárias e festivas da linha de chegada. Teria seis vezes ou mais os vencimentos que hoje recebo, se a canalhice me fosse minimamente aceitável.

  Declaro que não confio em governo algum, nacional ou estrangeiro, tanto menos quanto mais emprega em propaganda o erário e mais investe nos temores de seus simpatizantes. Pedi a cabeça do Sarney por quase ter levado o país à bancarrota. Pedi a cabeça do Collor pelos indícios consistentes e posterior confissão de corrupção. Pedi a cabeça do FHC pela dependência patológica de capital especulativo a que nos atrelou. Estranho e lamento ser repreendido e denegrido por me voltar contra Lula e Dilma PELOS MESMOS MOTIVOS.

  Declaro, porém, que não sacrificarei amizades e boas relações por causa de canalhas que fizeram contra o país o que Geisel falhou em fazer, eles o dividiram em facções inimigas. Relevei, relevo e relevarei as ofensas indirectas a mim dirigidas no afã de defenderem o foco de seus temores mais íntimos, pois sei que más intenções não lhes povoam as ações.

  Assim sendo, peço apenas que moderem o rajar de suas metralhadoras ideológicas, religiosas, políticas ou afetivas. Embora eu e muitos mais relevem em prol da amizade, suas balas furiosas continuam sendo ferinas. Ler publicações que chamam de idiota, egoísta, segregador, alienado e canalha quem não se deixou seduzir por discursos e estatísticas maquiadas, é como receber um tapa destinado a um outro que talvez nem exista de facto. Eu simplesmente não acredito e minha experiência consolidou minha descrença.

09/05/2014

O Lafer mandou um beijo

  Ana fechou o aplicativo após três horas seguidas sem sequer olhar para os lados. Já era tão aficionada
que andava com uma extensão para ligar o tablet a uma tomada, para não ficar sem bateria. Ela dormiu mal e acordou de mau humor. Foi se arrumar para mais um dia de trabalho, comeu algo que esquentou no microondas e saiu. Nas mãos lá estava o tablet. Ela tem carro, um belo MP Lafer vermelho com capota caramelo, mas não pode usar aquele aparelho ao volante, então vai de metrô para o emprego.

  Verificando o facebook, vê um monte de contactos rindo de um vídeo que não verá por enquanto, precisa ter um mínimo de atenção para saltar no ponto certo. Desce na Luz, se esgueira no meio da multidão e da saída vê o escritório. Gosta de acordar cedo porque o transporte público é menos ultrajante nesse horário, acordava cedo assim mesmo quando dirigia (faz meses) seu belo carrinho, para não se irritar no transito caótico. Vai com um olho na rua e outro no tablet.

  Chega ao emprego e nota que as pessoas começam a rir quando passa. Não dá muita trela, deve ter vestido a blusa pelo avesso de novo. Virou hábito. Senta-se, liga o computador, pluga o tablet e põe um olho em cada. Para tudo responde com monossílabos. Às vezes só resmunga um pouco e continua dividindo as atenções. São conversas animadas com gente que nem sabe que voz tem, mas a quem ouve só dá monossilábicos. Consegue produzir bem, por isso a chefia ainda não a incomodou.

  Entretanto os sons de risadas começam a incomodar. Ela vai ao toilette desvirar logo essa blusa e acabar com a farofa. Só que ela não está com a blusa virada. Na realidade faz calor, só agora vê que está usando sua regata com a estampa da Cacilda Becker. O jeans não está pelo avesso. Fez a besteira de não usar a maquiagem neste outono cruel, mas não deve ser isso! Os tênis não estão trocados, são os bons e velhos All Star pretos de cadarços brancos. Vai ver o penteado, então se lembra que mandou cortar no limite, porque não tinha mais paciência para pentear, queria aplicar todo o tempo possível nas conversas virtuais.

  Abre a boca, põe a língua para fora, vê se estava sentada em um banco molhado, se tem chiclete grudado na bunda, se os mamilos estão aparecendo (já teve um episódio constrangedor, eles são grandes) e não vê anormalidades... Tá, nem todos têm cabelos cor de cereja, mas isso não é motivo!

  Volta insegura ao posto de trabalho. Os colegas se aproximam, começam a falar todos ao mesmo tempo com "Cara, como você consegue?", "Foi gostoso?", "Fumou o quê, Ana?" e outros do tipo. O constrangimento só passa quando um colega tenta dar um beijo e recebe um gancho de direita que o manda para o mundo de Morpheus. O chefe vê tudo e a chama. Ela vai de queixo erguido, certa de que está com a razão.

  Ele, antes de mais nada, elogia o desempenho, seu senso de responsabilidade e diz que pode ter um futuro brilhante na companhia. Respira fundo, a olha nos olhos e solta que sabe o motivo de todos estarem rindo de si. Ele diz que vê pelas câmeras de segurança, há dias, colegas a abraçando, tentando puxar conversa, mas ela parece estar no mundo da lua. Ele afirma categoricamente que muitos colegas a alisaram, abraçaram e ela sequer esboçou reação.

  Ana vê o vídeo de algumas cenas e passa a se sentir péssima. Os colegas a trataram com muito calor humano e ela parecia uma geladeira. Mas não é por isso que riem. Ele fecha as persianas e mostra o vídeo que já foi compartilhado por mais de um milhão de usuários, pelo quê já é impossível tirá-lo da internet. Ela a apoia, diz para ser forte e roda. Ela vê uma cena em que estava na clínica, para um exame de rotina. A médica avisara que se atrasaria muito, então ela ligou o maldito tablet, que jurara deixar na bolsa, e se desligou do mundo.

  De início os outros apenas brincavam de abanar, fazer palhaçadas na sua frente e cutucar. Mas logo um mais atrevido se aproximou e ela não o percebeu, não se lembra dele nem da cena. Estava tão anertesiada, que ele ficou a vontade e todos pensaram ser um namorado, porque a abraçou com delicadeza, depois a alisou, beijou seu rosto, lhe tocou os seios, e ela não tinha sentido absolutamente nada. Quando a médica chegou, ele já tinha saído, após dizer "Nos vemos na cama, meu amor".

  O choro escandaloso e cheio de raiva invade a sala do gerente. Desta vez por quem a apoia, ela se deixa abraçar e desabafa. Está sentindo raiva do desconhecido, sim, mas principalmente de si. Se sente idiota, absolutamente idiota. Assim que o choro passa, o que fez os colegas se sentirem envergonhados, pelo menos isso, ele a leva para o banheiro privativo e lhe mostra o espelho, pede que se veja bem e exibe uma photographia da festa de aniversário da companhia, em Dezembro passado. Ela, uma otaku, usava cabelo cor de rosa, mas era uma cabeleira bem tratada e a pele estava bem mais corada e hidratada, além das olheiras que apareceram pelo excesso de uso daquele aparelho...

- Você até vendeu seu carro pra não ter que deixar de usar esse tablet!
- Que carro??
- Você não se lembra?! Aquele Lafer vermelho... Ana, acorda pra vida!

  Agora ela se lembra. Olha a bolsa, vê alguns chocolates que fixaram residência, camisinhas que há meses não usa e a miniatura de Lafer que usa como chaveiro. Lá está a chave do seu carro. Carro com que sonhou por anos e ganhou dos pais e irmãos, por ter se formado. Ele propõe que tire esta sexta-feira de folga remunerada, que vá para casa e medite, mas principalmente que volte a viver! Que tire aquele Lafer da garagem, baixe a capota e saia sem destino para não se esquecer que vive em uma das metrópoles mais importantes do mundo. Mas que deixe aquela porcaria transistorizada lá, desligada, para se esquecer um pouco do mundo de faz de conta que é uma rede social.

  Ela sai confusa e abatida. Olha para os lados, não só para localizar algum palhaço, mas também porque está meio perdida, está acostumada a fazer o percurso olhando para aquele aparelho, instintivamente, ter que se guiar visualmente já estava se tornando uma habilidade atrofiada. Se guia pelas placas e por alguns ruídos característicos. Sempre leu gente reclamando de São Paulo, então se surpreende em ver que tem algumas belezas, se espanta ao ver algumas mulheres passeando com seus rebentos, felizes com algum doce nas mãos.

  Pelas placas chega ao metrô, pelas placas vê qual precisa pegar, pelas placas vê onde deve descer, pelas placas consegue chegar ao condomínio. Que tristeza, precisa pegar a chave de casa para ver em que apartamento mora! Que vergonha! Olha para as caixas de correio e vê uma com o mesmo número da chave, abre e está lotada, inclusive com cartas da mãe! Meu Deus, que tipo de gente manda cartas em plena era de paranoia cibernética? Pois Dona Amanda escreve! Sobe, entra, tranca a porta e chora. Agora a mente começa a fica clara. Abre as cartas e começa a ler. A mãe reclama de não ter respostas, de ela não atender ao maldito celular, que está ficando aflita! Pega o aparelho e vê dezenas de ligações perdidas, muitas da mãe...

- Mãe? Sou eu! Posso passar o fim de semana com vocês?

  A mulher faz uma farra em casa. Ana toma um banho, se arruma direito e desce. Lá está ele. Empoeirado, fazendo cara de emburrado e ciumento, como se perguntasse onde está o namorado novo. Ela desativa o alarme, abre a porta, baixa a capota e ele entende. Pega de primeira e vai com ela para Guarulhos.


06/05/2014

O verdadeiro milagre




- Diga para nossos fiéis, irmã, que extraordinário milagre Deus fez em sua vida!

- Eu estava doente, muito doente. Pedi a Deus que me curasse e me devolvesse a alegria de viver! Um mês depois fui diagnosticada com câncer de mama.

- E Ele te curou?

- Não, ainda não. Me disse em sonho para eu ir a um hospital público, que lá encontraria a cura de que precisava.

- Mas você é rica, pode pagar pelo particular!

- Mas a cura de que eu precisava não estava lá. O médico me passou um monte de remédios e tratamentos caros, que ainda estou usando, mas a cura veio de outro modo. Quando cheguei ao hospital, fiquei horrorizada! Parecia a antessala do inferno! Pensei em sair logo, mas Deus me disse para ficar lá, se quisesse me curar do meu câncer. Fiquei e comecei a ver os rostos das pessoas, no meio da multidão que esperava até no chão por um atendimento. O mal cheiro era insuportável e eu atribuía àqueles pobres todos, por não tomarem banho, enfim... Até que eu vi o filho de uma empregada minha naquele meio. Pensei em levar ele pro meu ortopedista, mas Deus me disse que isso podia esperar.

- E você conversou com ele?

- Conversei. Quando vi, já passava das seis da tarde e ele ainda não tinha sido atendido, então Deus me disse "Agora pode levá-lo". Eu levei. O atendimento que ele não teve em seis horas de espera, eu consegui em cinco minutos e ele saiu com o tratamento encaminhado. Eu já nem lembrava do câncer, tomei os remédios naquela noite porque já era hábito. No dia seguinte me deu uma coisa estranha e peguei um caminho diferente pro escritório, e uma Kombi velha bateu no meu carro. Imagina, meu carro é um Mercedes E420, aquela Kombi inteira não pagaria a lanterna quebrada, então desci furiosa, mas passou logo. Vi lá dentro uma das crianças que tinha encontrado na fila do hospital público. Fui perguntar se estavam bem, se alguém tinha se machucado... No fim eu paguei outro tratamento, porque eles tinham saído sem a menina ser atendida. A lanterna eu troquei no mesmo dia, mas fiquei pensando e na primeira folga eu fui ao endereço que estava pintado na lateral daquela Kombi. Eu chorei! Meu Deus, como eu chorei! Era de uma creche humilde... Quanta miséria, pastor! Quanta miséria! Aquelas crianças todas praticamente só comiam quando estavam lá, e comiam mal!

- Mas Deus é maior!

- Infinitamente maior! Me perguntou em pensamento se eu sabia o que fazer, eu disse que sim e ele respondeu "Então faça". Faz um mês que comecei a ajudar aquelas crianças e ontem inauguramos a sede nova, em um prédio decente. No dia seguinte àquela visita eu voltei para a consulta de controle. O médico ficou contente com a minha reação, principalmente porque eu não reclamava mais de dores, eu não tinha mais tempo pra elas. Sim, eu ainda sentia algumas, mas elas pareciam menores, sabe? Então eu voltei pra lá, ver se estavam precisando de mais alguma coisa e estavam. Chamei a pediatra dos meus filhos para fazer o serviço, quando vi já tinha uma equipe médica inteira na creche. Eu estava empolgada, fui contar para minha amigas, mas tive uma decepção tão grande! Elas trataram com desprezo o assunto, cortavam para falar de futilidades, fiquei com raiva e saí sem nem me despedir. À noite, durante a oração, Deus me interpelou "Ué, você não gosta mais disso?" e eu perguntei "Como eu posso gostar dessa mesquinharia, Senhor?" e ele respondeu "Você fez isso a vida inteira, Marlene!". Eu comecei a me lembrar com uma clareza que não tinha de coisas que fiz há dez anos, mais do que das que acabava de fazer. Eu chorei! Nunca chorei tanto na minha vida!

- Você estava arrependida?

- Muito! Eu não pensava que fosse aquele monstro! Eu era um monstro! Na manhã seguinte eu comecei a tratar meus empregados de maneira diferente, comecei a lidar com meus filhos de perto em vez de pagar alguém para vigiá-los, comecei a ter mais interesse com os assuntos do meu marido, liguei pra parentes pobres que eu não via desde, sei lá, nem me lembro! Eu apontava o dedo para o menor deslize moral dos outros e me enganava que era uma mulher santa! Eu me esbaldava na minha fortuna não era pra aproveitar o fruto do meu trabalho, era pra esfregar nas caras dos outros que eu tinha e eles não!

- Então Deus não te livrou de graça do câncer, nem te livrou das coisas que você já fez!

- Não. Para o câncer Ele me encaminhou para um médico excelente e muito humano. Meu problema nunca foi o câncer, nem as dores que ele causava, nem minha família, nem nada de fora. Meu problema era no coração.

- Explique, irmã.

- Meu coração era frio, duro e áspero. Eu não me importava com ninguém de verdade, eu guardava mágoa, era rancorosa, tinha uma ansiedade tremenda resultado de um espírito pesado e vazio. Todos os dias eu passava camadas de pan cake pra disfarçar as rugas que eu mesma causava com meu coração maldoso! Todo mês eu aplicava mais uma dose de botox para conter a flacidez que era resultado de um coração vazio. Eu gastava uma fortuna todos os meses para disfarçar o mal que eu fazia a mim mesma! Só que depois daquelas experiências eu comecei a descuidar disso. Eu era uma baranga, vamos ser sinceros! Mas era porque eu me embarangava com os venenos que eu mesma ingeria. Na semana passada eu já tinha me acostumado a olhar as pessoas nos olhos e cumprimentar gente pela rua, efeito de ter abandonado as falsas amigas. Eu vi uma mulher muito bonita me acompanhando até o ginecologista, fui cumprimentar e, quando vi, era uma vitrine espelhada! Não tinha nada de especial, só um batom cereja e um blush! Era eu! Sem pan cake, sem botox, sem porcaria nenhuma na cara! Era eu, com quarenta e nove anos! Sorrindo sem medo de marcas de expressão... Quando terminei a consulta, a médica me perguntou quem era o meu cirurgião plástico, porque as outras pacientes estavam encantadas com a naturalidade dos resultados.

- E você respondeu...

- O amor de Deus.

- Suas dores passaram? Foi curada do câncer? Ficou mais rica?

- Ainda sinto dores de vez em quando, mas elas não têm mais importância nenhuma. O meu médico está optimista com os exames e acredita que em um ano posso parar com todo o tratamento. Eu fiquei mais rica sim, mas porque consigo trabalhar melhor sendo feliz. Mas principalmente, porque consegui um tesouro que as traças não roem e os ladrões não levam. Hoje eu sou mãe de meus filhos e eles me respeitam com tal, sou esposa do meu marido e ele me respeita e me deseja como tal, eu sou filantropa e tenho centenas de carinhas bochechudas sorrindo assim que me vêem chegando à creche, aonde meus filhos e meu marido me acompanham. Hoje eu como com minha cozinheira à mesa da copa, nunca mais sumiu um cinzeiro sequer da minha casa e o motorista passou a cuidar melhor dos carros. Eu ainda tenho problemas para resolver todos os dias, tenho todos os aborrecimentos que qualquer pessoa honesta enfrenta todos os dias, mas tudo isso ficou pequeno, quase insignificante.

- Então, irmã, diga aos nossos fiéis que milagre extraordinário Deus operou em sua vida!

- Eu tinha um coração áspero, duro e frio, hoje ele é liso, macio e morno. Com isso eu consegui tudo o que só pensava que tinha, mas era mantido às custas de muito dinheiro. Hoje eu sou uma pessoa completamente nova, infinitamente melhor do que antes. Com isso eu passei a ser e me sentir realmente Filha de Deus.


-Entenderam, irmãos? Quem promete recompensas em troca de bajulação é o diabo!

02/05/2014

Habilitação de salto alto



  Um texto ameno, para variar... Quer dizer, o assunto é ameno, mas pode eriçar pelos de ativistas com baixa capacidade de interpretação de textos. Vamos lá.

  Norma Jeane Mortenson, a glamourosa Marilyn Monroe, disse certa feita que não sabia quem inventou o salto alto, mas as mulheres lhe deviam gratidão eterna. Eu acrescentaria: Deveriam gratidão eterna, se ele tivesse deixado um manual da proprietária. Explico.

  Andar de salto não pode causar só problemas ortopédicos, mas também de convivência. Uma mulher que não sabe andar de salto e se mete a andar, não fica apenas desengonçada, ela atrapalha o fluxo. Na tentativa de se equilibrar nos sapatos, não perde apenas a graça do andar, acaba cambaleando e mexendo demais os membros superiores, não só ocupando mais espaço do que lhe cabe como também passando insegurança aos demais, que tentam manter uma distância maior. Mais ou menos como um homem que sempre andou de tênis e chinelos, e de repente se aventura em uma fantasia e precisa usar saltos.

  Visualmente é uma ironia triste ver uma moça bem vestida, com roupas bem cortadas e sapatos de boa qualidade, andando emborcada, trotando com as pernas bastante abertas. Se usar salto muito alto já compromete a coluna, imaginem andando de modo rude! Isso acontece porque ela simplesmente não sabe usar salto alto! Anda trotando porque não consegue controlar os pés se iniciar o passo com o salto do sapato, e anda de pernas abertas porque tem medo de cair. Se estiver acostumada a essa situação, as coisas pioram muito, porque a coluna ficará cada vez mais comprometida, assim como os tendões e a própria saúde da moça. A velhice saberá cobrar o preço, que pode incluir uma corcunda.

  Novamente vou passar por antiquado, porque ainda não me ofereceram uma resposta melhor. Não que eu não seja antiquado em certos momentos, mas não vem ao caso.
  Alguém andou espalhando que ser e se manter bonita é uma regra opressiva da estética dos anos cinqüenta, e muita gente levou à sério. Não estou inventando, eu vejo, leio e ouço verdadeiras aberrações totalmente desprovidas de fundamentação científica e empírica, e esta não é a pior. Tanto quanto, alguém espalhou que charme e elegância são coisas de gente fútil e elitista, e dos anos noventa para cá as moças deram muito crédito a essa asneira. Normalmente quem diz isso é do tipo que só quer saber de ir ao que interessa e confunde facilmente admiração, mesmo que discreta e silenciosa, com assédio.

  Não que andar de salto seja algo simples e menos ainda que todas tenham obrigação de dominar essa arte, eu escrevo aqui para as muitas que reclamam que não conseguem se equilibrar naqueles sapatos chiquérrimos, mas também perigosos. As adeptas dos pés horizontais não se sintam ofendidas, não é contra vocês que eu escrevo, é pelas adeptas dos pés verticais. Assim como escrevi este texto aqui, incentivando o uso da mini saia e enumerando os benefícios para suas usuárias, escrevo este para as amantes dos passos aristocráticos.

  Em primeiro lugar o salto alto não é para qualquer ocasião. Não só por forçar as pernas e a coluna, mas também porque precisa de piso liso e bastante horizontal, tanto mais quanto mais alto for o salto. Dirigir então, nem pensar! O salto pode prender um pedal e o acidente é certo; salvo se for um Fusca ou derivado, claro, onde os pedais são dos mais antigos, fixos no assoalho e pressionados pelas pontas dos pés; um dos motivos de ele cansar mais em longas viagens.

  Em segundo lugar é necessário reaprender a andar para usar salto, principalmente os perigosos agulhas. Como seria? Explico: Comece ficando parada, com os pés juntos. Tenha em mente algumas coisas...
  • Os passos ficarão mais curtos quanto mais alto for o salto, é inevitável porque as panturrilhas ficarão contraídas quase totalmente e o tempo todo. Então não use se estiver com muita pressa;
  • Vais atrair muita atenção masculina e das lésbicas. Andar de salto sem parecer uma gueixa exige que se rebole muito, para compensar a limitação das panturrilhas, tanto mais quanto longos e rápidos forem os passos, pressa que qualquer ortopedista contraindica, diga-se de passagem;
  • Vais se cansar mais. Isso parece óbvio, mas ninguém pensa nisso quando vê aquele par maravilhoso e assinado na vitrine. Músculos retesados fadigam mais depressa, então se preparem para parecerem moças delicadas nascidas em berço de ouro, porque vão precisar de descanso e ajuda com grande freqüência; torçam para haver um cavalheiro por perto, aliás, rezem;
  • Vai doer. Tenha um pequeno estoque de curativos e gel de arnica da bolsa, porque pés e pernas vão reclamar muito. Se a jornada se estender por algumas horas, logo as coxas reclamam, depois os glúteos e finalmente a coluna. Novamente vais parecer uma dondoca mimada, mesmo que a impressão seja absolutamente falsa.
Bem, eu não quero transformar seus sonhos de elegância em uma filial do purgatório, então vou enumerar as vantagens de quem aprende a andar de salto alto; aprende e pratica regularmente:
  • A primeira vantagem é a elegância, que será vista de longe. Te obrigando a corrigir a postura, até mesmo uma refeição exagerada vai causar incômodo, ajudando inclusive na dieta. Com a postura vêm as companhias mais refinadas, com elas novas oportunidades, e quem for teu amigo de verdade não vai te abandonar porque os outros te acham metida à besta;
  • A segunda é a concentração. Andar de salto não é para estabanadas, é quase como dirigir um automóvel. Acostumar-se a monitorar os próprios passos te ajudará a ter concentração também nos estudos e no trabalho, é quase automático;
  • A terceira é a responsabilidade. Com o já exposto, o senso de espaço e oportunidade brota, se ainda estiver recluso e cresce. Sabendo se ater ao seu espaço, aprende-se a respeitar o espaço alheio e cuidar para evitar invasões, com o tempo a sua função na sociedade fica mais clara e mais simples arcar com ela, seja qual for a que tiveres escolhido;
  • A quarta é o glamour. Não falo só da leva de babões que deixam os queixos caírem com a tua passagem, falo também da tua agenda social. Salto alto cansa, te faz ver tua casinha e tua caminha com mais simpatia, te obrigando a selecionar melhor os convites e eventos. A conseqüência é imediata, quem não pode ir a qualquer festa é sempre vista como pessoa ocupada e importante, os teus amigos passarão a selecionar melhor os lugares aos quais de convidam, e tua presença passará a ser mais notada.
  Parece tudo muito bonitinho, mas ainda fica a pendência, não existe uma faculdade formal de elegância no país. Quando muito, gays famosos ensinam em programas de televisão seus truques para usar salto alto. Infelizmente a televisão foca demais a sensualidade e acaba distorcendo as duas imagens, a dos gays e a do salto alto, já que, como disse um amigo genial, inteligência não vende bombril; sofisticação também não. Dicas para quem quer usar salto:
  • Ninguém em sã  consciência entrega um Plymouth Superbird Numerado para quem acabou de tirar a habilitação provisória. Ninguém em sã consciência te aconselharia a usar um salto Luís XV logo de cara. Acostume-se aos saltos baixos e vá graduando;
  • Tenha sempre uma sapatilha na bolsa, para quando tiveres que dirigir. Também servirá para as horas de descanso, quando estiveres sozinha no escritório;
  • Evite entrar em banheiros recém lavados. Não preciso dizer os motivos;
  • Cuidado com o comprimento da saia, salto alto empina o derière e levanta a parte de trás da barra, revertendo a intenção de manter os cafajestes longe. Eu sei, é um absurdo, os garotos é que deveriam aprender a se controlar desde criança, mas infelizmente isso ainda é um sonho;
  • Atenção nas escadas! Suba e desça sempre meio de lado, isso ajuda a disfarçar closes indiscretos de tua anatomia e ainda facilita o deslocamento;
  • Sempre, mas SEMPRE MESMO prefira os sapatos com alma de aço. Um salto alto é muito perigoso e a falta de rigidez torcional pode te fazer cair de tal forma, que pode até quebrar teu pescoço; isso já aconteceu e é uma das mortes mais idiotas do mundo. Gaste mais por tua segurança e não tenha preguiça de levar uns cem ou duzentos gramas mais em cada pé.
  Andar de salto é quase como dançar, por isso umas aulas de balé fazem tanta falta não só a quem usa o salto, mas também a quem vê o espetáculo desengonçado. Já é deprimente o suficiente ver os rapazes se tornando trogloditas mimados. Tentem as amantes dos saltos reproduzir isto: Descalça e de pés juntos, levante um pouco um deles e dê um chute delicado para frente, iniciando assim o passo. O pé que iniciou o passo deve ficar na frente do outro, que para dar o outro passo deverá repetir a operação em um semicírculo. Faça de modo que o calcanhar toque primeiro o chão e o peito pouse suavemente, se apoiando por último nos dedos. Vais sentir a musculatura trabalhando, especialmente a do quadril. Sempre use os glúteos para puxar a perna e dar o impulso, quanto mais músculos envolvidos, menos vais se cansar. contraia levemente o abdômen, isso vai ajudar a manter a postura e a coluna vai te agradecer por isso. Faça o exercício andando sobre uma linha reta, até se acostumares a andar assim, o que vai te ajudar até quando o sapato for rasteiro.

  Por último, mas não menos importante: Pelo amor de Deus! Feminilidade não é machismo! Ser delicada e elegante não é ser submissa! Ser e se manter bela não é uma afronta às conquistas femininas! Todas as mulheres com quem tenho amizade, e são muitas, são independentes e mandam em seus narizes, e prezam tudo isso de que tratei neste texto! TODAS!

  Antes do que vocês pensam, estarão andando com naturalidade e até certo conforto no salto alto,  que uma vez dominado é um servo fenomenal. Para quem quer se aprofundar, o ícone de hoje, diva e digna herdeira da elegância cinqüentista, é Dita Von Teese.