01/04/2016

A viagem bem aproveitada




  Um peregrino entrou em uma caverna, para um repouso no fim da tarde. Estava em viagem, uma longa viagem. Contrariando o que se aceitaria como lógico em pleno século XXI, saiu sem celular, sem GPS, sem carro, sem estradas, sem absolutamente nada que não fosse essencial. Desceu em Dublin, deixou seus amigos avisados e saiu pela Irlanda. Há três dias estava no caminho, não importa qual era, era um caminho, o que se abriu à sua frente no decorrer da caminhada.

  Trazia alguns Euros, para eventualidades, só o suficiente para emergências e subsistência, caso não encontrasse alimentos ou pousada. Até o momento, encontrou tudo de que precisa, tudo mesmo; frutas pelo caminho, um pequeno peixe que ainda supre suas necessidades proteicas, árvores, construções abandonadas e grutas em que se abrigou sempre que necessário.

  Mas o principal, o absolutamente importante: Trouxe a si mesmo para a viagem. O ego servindo de pedestal, em vez de busto, susteve até agora o sagrado silêncio que lhe permitiu ouvir os próprios pensamentos, distinguir os seus dos invasores, selecionar quais dos seus mereciam continuar e calar a todos quando não precisasse deles. Sem querer, do mesmo modo como iniciou a jornada, entrou em profundo estado meditativo, enquanto apreciava a riquíssima paisagem e se dava conta do próprio corpo.

  Aquela caverna veio, como tudo mais nesta aventura, no momento certo e no tamanho certo; nem mais, nem menos. Apreciando o silêncio e a escuridão em progresso, viu uma pequena lanterna acesa, no fundo da caverna. Não se pergunta como foi parar lá e nem por que não a notara antes. Uma lanterna de latão, quadrada, com vidros redondos verde, amarelo, azul e vermelho, incrustados nas lentes de cristal que, de tão transparentes, eram quase invisíveis.

  Ele pegou a fonte de luz e a colocou na pedra mais alta da caverna, isso iluminou tudo ao redor e produziu uma boa sombra à qual poderia dormir sem problemas. Desceu da lâmpada que, sabe-se lá que combustível mantinha acesa, tinha odores de relva fresca e flores campestres, um vapor perfumado de cor violeta. O vapor tomou a forma de uma dama seminua, de aspecto lânguido, coberta apenas no busto e na pélvis por um tecido dourado extremamente fino, mas opaco, caído sobre o ombro direito, dando a volta por trás, pela cintura e caindo na frente. Também não se perguntou como aquele tecido se mantinha preso ao corpo da figura. A dama ruiva láctea de feições delicadas se dirigiu a ele...

- Colocaste meu lar onde deveria estar, quando antes se encontrava esquecido no canto mais negligente deste abrigo.
- Luz escondida não ilumina.
- Como gratidão, te concedo três desejos.
- Por quê?
- Porque fizeste o que todos os outros deveriam ter feito.
- E o que fizeram?
- Tentaram levar a lanterna e guardá-la só para si, me obrigando a trazê-la de volta inúmeras vezes no decorrer de milênios.
- Eu não me preocupei em ter recompensas, o que fiz foi o que deveria ter sido feito.
- Mas eu preciso te conceder os desejos.
- Serás punida se não o fizeres?
- Sim, por minha consciência. É a minha razão de existir.
- E se eu não tiver desejos, senhorita...
- Nerthus. É como me evocam pelas cartas. Não precisa ser um desejo, basta uma ordem.

  Ele a observa de coração tranqüilo, já sem os pensamentos do mundo a atrapalhar suas conclusões. O aspecto de delicadeza, percebeu, era enganoso. Na ausência de desejos, mas sem querer causar mal, e evitar que ela voltasse a ter o trabalho de resgatar sua lanterna, pede apenas sua companhia nesta jornada...

- Só isso?
- Se é tua consciência que te impele a realizar desejos, então a minha acolhe teu desejo de ser útil. Se respeitares a necessidade de momentos de silêncio e meditação, me acompanhe até o fim da viagem.
- Te acompanharei até o fim de tua jornada. Até onde pretendes ir, por curiosidade?
- Até o fim. Onde ele está eu não sei, mas chegarei lá.
- Sim, claro – responde sorrido. O segundo desejo, meu senhor?
- Não sou senhor de minhas companhias, sou companheiro delas. Tento ser senhor de mim, mas só conseguirei com o tempo e ninguém pode fazer isso por mim.
- Posso ajudar-te – disse sorridente, já com uma túnica de seda sob a faixa dourada. Se precisares de luz, em tuas dúvidas, eu a lançarei.
- Só preciso do respeito que tenho aprendido a ter por mim mesmo. Se me respeitares, sem medo de me fazer uma pergunta que tiveres, a segunda vontade está concedida.

  A figura volita ascendendo lentamente, feliz, com as mãos juntas ao queixo, então voa rapidamente em evoluções complexas que, percebe o viajante, formam padrões típicos da cultura irlandesa. Ela não está simplesmente externando sua alegria, está construindo algo. Pousa suavemente, já em um longo vestido com busto à mostra e uma cinta dourada com uma faixa pendente. Cinta, bordas das mangas e gola em tons de dourado, com motivos irlandeses enfeitando toda a sua extensão...

- Te acompanharei em teus termos, meu amigo. Aceitarei tua companhia como aceitaste a minha. Agora, então, qual o teu último pedido? A força para realizar tudo o que sonhas lhe será dada.
- Meus sonhos são minha responsabilidade, não posso te privar dos teus em prol deles. Seria te empurrar problemas que não lhe cabem, compreendes?
- Não sejas tão duro consigo estrangeiro. Vens do novo mundo, percebo pelo excesso de autocrítica. Vocês fazem pilhérias para parecerem felizes, apenas pela necessidade de adoçar o fardo que levam. Vamos, a misericórdia que pregam não funciona, meu amigo, porque vocês não se incluem nela. Peça, isso me fará feliz!
- Com essa personalidade agridoce e tamanho conhecimento do âmago humano, imagino que tenhas muita sabedoria.
- Sou mais antiga do que a humanidade, eu precedo as nações e toda a cultura. O que sou é resultado do que aprendi até vocês se exilarem neste mundo. Vamos, faça-me feliz, permita-me ajudar em tua jornada com o último pedido.
- Se desejas ajudar-me, então já fizeste por mim o meu último pedido, sábia Nerthus.
  Flores de todas as cores agora enfeitam seus cabelos e formam uma coroa na cabeça da figura. Está tão feliz que não cabe em si e o perfume floral vai além dos limites da caverna. Os pedidos egoístas, os desejos baixos e as vontades pueris deram lugar a uma noite de sensatez...
- Meu amigo, tu selaste teu destino. Vais ouvir minhas broncas, reprimendas e advertências pelo resto de tuas vidas. Não me quiseste como tua, agora sou contigo. Não quiseste algo para preencher teus vazios, agora te darei trabalho para tu mesmo o fazeres. Não aproveitaste o ensejo para um último porre, agora te manterei sóbrio pelo resto de tua jornada, que advirto, será mais longa do que os dias de teus passos. Não és dono de minha lanterna, mas te entrego-a como sinal de nossa aliança e início de nossa jornada conjunta. Agora acorde, tens sonhos a realizar e disseminar pelo mundo.

  Ele acorda na cama do hotel. Não se lembra de como chegou lá, lembra-se de ter entrado na caverna e adormecido, então o sonho e é só. Os amigos chegam, perguntando por si e a portaria informa. Eles sobem, gabam-se e o repreendem por ter se ausentado por uma semana sem dar notícias. Enumeram as diversões, os prazeres, os micos e os selfies de que ele não usufruiu. Ele ouve, observa, suspira e responde...

- Pois não era para aproveitar a vida à nossa maneira que viemos?
- Só! A gente curtiu, você não.
- Quem disse, falastrão? Acaso estavas ao meu lado, na jornada que empreendi?
- Véi, que jeito é esse de falar? Fumou o quê?
- Eu aproveitei a minha vida à minha maneira. Fico feliz por vocês, não me importo por terem levado metade dos mil Euros que eu trouxe, afinal vocês precisaram deles, eu não. Vamos comer, temos um vôo (com circunflexo) para o Rio de Janeiro à tarde.
- Valeu pela grana, mas que tu tá esquisitaço, tu tá!

  No hall, após acertarem a estadia, e o peregrino agradecer em gaélico pela acolhida, o gerente pede um favor. Há uma moça que vai para o Brasil, para seu doutorado em botânica, e o amigo lhe pareceu confiável. Os seis olham para uma jovem ruiva de vestido branco, fino, com um cinto dourado, sentada na poltrona, com uma lanterna estranha...

- Eu disse que não te deixaria mais. Pode ser nesta mesma forma?
- Decerto, minha amiga.
- Chame-me de Enya Nerthus. E já advirto que te trarei de volta à Irlanda, ao fim dos estudos.
- Por que – pergunta sorrindo.
- Porque sou tua companheira e quero o melhor para ti. Dá para nos casarmos antes do vôo.

Os cinco vêem incrédulos aquele monumento de mulher se agarrar, enquanto sussurra, ao amigo que teria perdido tudo o que vieram aproveitar na Irlanda. Agora notam que ninguém aproveitou mais do que ele, e sem gastar um centavo sequer.

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